26 Janeiro 2012
Para entender o fato cristão, além de ter um bom conhecimento do Novo Testamento, é preciso conhecer a história da Igreja e especialmente a história do concílios e da formação dos dogmas.
Hoje, convidamos a conhecer o que representou o primeiro Concílio, o de Niceia. Héctor Rodríguez Fariña, de forma novelesca e sugestiva, nos facilita essa história. Apresentamos a primeira de duas cenas: as expectativas.
Pode-se completar este roteiro com a leitura dos links para artigos da Wikipédia ou com outros materiais.
A narração foi publicada no sítio Atrio, 24-01-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
18 de maio de 325 d.C.
A linha luminosa do horizonte sobre as águas calmas do lago Ascani parecia uma costura que unia as águas da terra com o céu. Cornélio e Troas se voltaram para contemplar o encanto daquele precioso amanhecer. O sol subia silencioso por trás da colina de Niceia, tingindo aquela linha de cores variadas.
─ Olhe, a Terra é redonda, mas ninguém acredita nisso – disse Troas. – Veja essa linha no horizonte, não é uma reta, é uma curva, eu vejo. A Terra redonda como a Lua e o Sol. A Terra é redonda... e se move ao redor do Sol?
─ Você acha pouco o que os bispos estão trazendo nas mãos estes dias? Estamos ficando loucos? Terão que passar muitos séculos para que a Terra seja redonda. Continuaremos vivendo em uma Terra plana – interrompeu Cornélio.
─ É isso o que eu quero dizer: continuamos vivendo e acreditando no que queremos. Constantino nos assusta, assim como a fraqueza do império, as perseguições de Diocleciano, com mais mortos do que muitas guerras sangrentas: sem nos darmos conta, só pensamos em algo que possa nos trazer paz e tranquilidade. O que aconteceria se descobríssemos, um dia, que a Terra é redonda? Seria preciso matar todos os que não acreditaram nisso? O que aconteceria se, nos dias do Concílio, chegássemos à conclusão de que o Nazareno não era o Filho de Deus, mas sim um homem como nós? Seria preciso matar todos os que são felizes adorando a Cristo como Deus?
─ Vejo-lhe pessimista, Troas. Você pensa que o concílio vai impor o Credo de Eusébio de Cesareia? Dizem que Ósio pediu que se estabeleça que os diáconos e os presbíteros, uma vez ordenados, já não poderão se casar. Você vê algum sentido nisso? Vão formar com eles uma classe privilegiada, superior a nós, leigos, e seremos apenas um apêndice da Igreja. A Igreja serão eles sozinhos, os homens, excluindo as mulheres, é claro: "A Igreja ensina, a Igreja manda, a Igreja não se equivoca".
─ Nem me fale. Os bispos que estão chegando nestes dias são em sua maioria arianos. Eles não poderão permitir que se dê um passo atrás. Por outro lado, o bispo de Nicomedia, que fará a defesa do arianismo, é muito inteligente e vai deixar claro que aqui a verdadeira heresia é a de um Deus feito homem e só para dar autoridade a alguns homens. Isso é o que tem que mudar.
─ Exato – continuou Troas –, a única seita que se separou da verdade do Nazareno é a que se amparou nas filosofias gregas de Sócrates e de Platão, e em seus seguidores, João e Paulo: as ideias eternas e espirituais, o Logos oposto à realidade sensível e corrupta, o dualismo do pecado, a condenação, a salvação, o sexo, a segregação: homem e mulher amo e escravos, ricos e pobres, tudo isso vai ficar enterrado aqui em Niceia como restos de um passado incerto. Agora sim, para os que queiram continuar vivendo de boa fé neste mundo onde sentem à vontade, o arianismo vai ser uma intolerável heresia. Devemos aprender a conviver com cada um, respeitá-los e nunca condenar ninguém: "Nem eu te condeno", ensinou-nos o Nazareno.
Os dois amigos ficaram em silêncio, absortos em seus pensamentos. Faltavam dois dias para o começo do Concílio, e Cornélio se preparava para receber vários participantes que se hospedariam em sua casa.
As crianças saíam por todas as partes para ver os convidados chegando. Correndo pela íngreme estrada, se divertiam como se fosse uma festa. Alguns cavalos que subiam por essa encosta esporeados por seus ginetes não conseguiram interromper suas brincadeiras: "Buscamos Cornélio!".
─ Sigam até a colina, aquela é a sua casa.
O bispo de Cesareia chegou sem mais companhia do que dois presbíteros que cavalgavam com ele.
─ Bem-vindo à Niceia, Eusébio. Descanse, tome algo e una-se a nós. Estávamos lhe esperando.
─ Pelo que dizem, vai ser um Sínodo sem o Bispo de Roma – indicou o recém-chegado –, mas ele vai ser o maior Sínodo da Igreja. Sabe-se que Constantino convidou 800 bispos do Ocidente e 1.000 do Oriente. Ele vai ser a maior força para chegar a um consenso. Há "bispos" da Igreja que aplaudem a perseguição, tortura e morte de outros cristãos, como remédio contra a heresia. Um espírito de vingança carnal se apoderou de suas almas. Uma intolerância feroz, egoísta e violenta. Só a adesão ao verdadeiro credo pode acabar com essas afrontas.
─ Isso é horrível – respondeu Cornélio. – Dizem que você terá que presidir, Eusébio. Ósio ainda está a caminho, e ninguém sabe quando chegará. Parece que o Imperador o convidou pessoalmente. O bispo de Córdoba foi quem mais influenciou na sua conversão ao cristianismo, segundo dizem.
─ Constantino se converteu sob a influência de sua mãe, Elena, que encontrou em Jerusalém os paus da cruz de Cristo e os levou para Roma, entregando-os ao Papa Silvestre. O imperador mandou pintar o símbolo da cruz no escudo de todos os seus soldados e, na batalha da Ponte Mílvia, derrotou Maxêncio. Ele admira a Igreja: sabe que nenhum de seus súditos pagãos daria sua vida por crença nenhuma. Segundo ele, essa é a religião que pode salvar o império e atrair os novos povos do norte da África, destruindo o seu paganismo. Ele quer organizar a Igreja como um exército, com generais, os bispos, obedientes ao bispo de Roma.
─ Sim, claro – respondeu Cornélio –. In hoc signo vinces. Com o mesmo sinal Constantino se impôs ao Papa Silvestre. Silvestre não para de enriquecer com os benefícios do Imperador, que acaba de lhe presentear um de seus palácios. Constantino deve ter lhe ordenado para que ele ficasse em Roma, para que ele seja aquele que vai ganhar aqui mais uma batalha, a batalha contra Ário. Se fosse assim, essa batalha mudaria o rumo da história e da civilização. As gerações vindouras continuariam reduzidas ao silêncio pelas decisões nefastas de Niceia. Aparecerão mais "Constantinos", que usarão a Igreja e Jesus Cristo para justificar suas atrocidades, tudo em nome de Deus. É uma pena que nós, os leigos, não tenhamos nem voz nem voto em tudo isso. A Igreja nos converteu em uma casta.
Eusébio de Cesareia respondeu sucintamente:
─ Ário é quem deveria se apresentar perante o Concílio e expor suas doutrinas. Eu trago o Credo da Palestina para que os bispos o assinem. A presença de Constantino será decisiva para obter a unidade. A garantia da unidade na Igreja começa com a obediência cega aos bispos e ao papa.
A postura do bispo de Cesareia foi seguida por um silêncio ensurdecedor. Como era possível que um homem tão culto e conhecido pelo seu passado ariano se colocasse agora mais perto de Constantino do que da tradição do Nazareno?
Ouviram-se mais cavalos chegando. Um jovem forte, visivelmente cansado pelos desconfortos de uma longa viagem, entrou no recinto.
─ Minhas saudações a todos os presentes e em particular ao senhor Cornélio, a quem o bispo de Córdoba envia esta carta. Sou Teodósio e me sinto feliz por estar aqui com vocês.
─ Obrigado, Teodósio, bem-vindo a Niceia. Espero que nos traga boas notícias do bispo de Córdoba. Vá descansar, e amanhã poderemos saudar também o bispo de Nicomedia, que se unirá a nós.
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Concílio de Niceia: uma esperança e uma ameaça - Instituto Humanitas Unisinos - IHU